GEOPOLITICA

 





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Gaza: Os negociantes do extermínio

    Genocídio segue pois também é business, aponta relatora da ONU. 50 corporações globais enriquecem. Vão além da indústria bélica: big techs, petroleiras, agro… e o Airbnb! Como freá-las? Por que o Sul global pode ter papel relevante?

Quando concedeu esta entrevista, o relatório que Francesca Albanese preparou sobre as corporações globais que lucram com o genocídio em Gaza ainda estava embargo – portanto, não poderia esmiuçá-lo. Neste dias, o documento finalmente foi divulgado. Chama-se “Da economia de ocupação para a economia de genocídio” e investiga a “a maquinaria corporativa que sustenta o projeto israelense de deslocamento e substituição de palestinos nos territórios ocupados”. É contundente: propõe responsabilizar o setor privado (assim como empresas estatais, públicas e sem fim lucrativos) por esta cumplicidade, inclusive os seus executivo, apontando a necessidade de aprofundar o escrutínio e da utilização do direito internacional.

Mostra a atuação destas corporações em várias áreas, como o setor militar com as fabricantes de armas israelenses e de vários outros países, principalmente os EUA. O de vigilância (IBM, Microsoft, Alphabet, Amazon etc.) e a chamada ocupação através do turismo por meio da Booking Holdings e a Airbnb. Também aponta o disfarce civil, com o fornecimento de maquinária pesada a serviço do colonialismo feito por empresas como a Hyundai e Caterpillar Inc. e Volvo. E o setor de abastecimento e controle de recursos naturais, onde atuam a US Chevron, Mekorot e citando, inclusive a Petrobras (que nega ter vendido “petróleo bruto nem óleo combustível para clientes israelenses durante o período mencionado” conforme diz o relatório ).



Já não há muito mais o que dizer sobre os níveis incomensuráveis de devastação que o genocídio em Gaza atingiu. Francesca Albanese, Relatora Especial da ONU para os Territórios Palestinos Ocupados, tem documentado o genocídio e se junta ao apresentador Chris Hedges neste episódio de The Chris Hedges Report para esclarecer a situação atual em Gaza, incluindo trechos de seu próximo relatório sobre quem lucra com o genocídio.


O cerco de Israel contra os palestinos está deixando a população faminta, e Albanese critica outras nações por não cumprirem suas obrigações sob a lei internacional. “[Os países] têm a obrigação de não ajudar, não cooperar, não comercializar com Israel, não enviar armas, não comprar armas, não fornecer tecnologia militar, não adquirir tecnologia militar. Isso não é um ato de caridade que estou pedindo. É sua obrigação”, explica ela.

Albanese compara Gaza e o cerco de Israel a um campo de concentração, afirmando que é insustentável, mas também permite ao mundo testemunhar como uma entidade colonialista ocidental funciona. “Há uma conscientização global sobre algo que, por muito tempo, foi uma prerrogativa dolorosa da maioria global, o Sul Global: a percepção da dor e das feridas do colonialismo”, diz Albanese.

Em seu próximo relatório, Albanese detalhará como a Palestina foi explorada pelo sistema capitalista global e destacará o papel de certas corporações no genocídio. “[Há] entidades corporativas, inclusive de Estados amigos da Palestina, que há décadas lucram com a economia da ocupação, porque Israel sempre explorou a terra, os recursos e a vida dos palestinos”, afirma ela. “Os lucros continuaram e até aumentaram à medida que a economia da ocupação se transformou em uma economia de genocídio.”

Quando a história do genocídio em Gaza for escrita, uma das vozes mais corajosas e incisivas pela justiça e pelo cumprimento da lei internacional será Francesca Albanese, relatora especial sobre direitos humanos nos territórios palestinos. Albanese, uma jurista italiana, ocupa o cargo de relatora da ONU desde 2022. Sua função é monitorar e denunciar “violações de direitos humanos” cometidas por Israel contra palestinos na Cisjordânia e em Gaza.

Albanese, que recebe ameaças de morte e enfrenta campanhas de difamação orquestradas por Israel e seus aliados, busca corajosamente responsabilizar aqueles que apoiam e sustentam o genocídio. Ela denuncia o que chama de “corrupção moral e política do mundo” pelo genocídio. Seu escritório emitiu relatórios detalhados documentando crimes de guerra cometidos por Israel em Gaza e na Cisjordânia, um dos quais, Genocídio como Apagamento Colonial, reproduzi como apêndice em meu último livro, Um Genocídio Anunciado. Ela está preparando um novo relatório que expõe bancos, fundos de pensão, empresas de tecnologia e universidades que auxiliam e incentivam as violações de Israel à lei internacional, aos direitos humanos e aos crimes de guerra. Ela apontou organizações privadas que são “criminalmente responsáveis” por ajudar Israel a cometer o “genocídio” em Gaza. Ela afirmou que, se o ex-chanceler britânico David Cameron ameaçou retirar financiamento e sair do Tribunal Penal Internacional (TPI) caso este emitisse ordens de prisão contra o primeiro-ministro israelense Benjamin Netanyahu e o ministro da Defesa Yoav Gallant, Cameron e o ex-premiê Rishi Sunak poderiam ser acusados de crimes sob o Estatuto de Roma, que criminaliza quem impede a persecução de crimes de guerra. Ela também pediu que altos funcionários da UE sejam acusados de cumplicidade ou crimes de guerra por apoiarem o genocídio, afirmando que suas ações não podem ficar impunes. Ela apoiou a flotilha Madleen, que tentou romper o bloqueio a Gaza para levar ajuda humanitária, escrevendo que o barco, interceptado por Israel, carregava não apenas suprimentos, mas uma mensagem de humanidade. Juntando-se a mim para discutir o genocídio em Gaza e a falha dos governos ocidentais em intervir ou cumprir a lei internacional está Francesca Albanese. Vamos esclarecer a situação em Gaza. É muito sombria. Não podemos amenizá-la, especialmente desde 2 de março.

Francesca Albanese: Sim, Chris. Antes de tudo, obrigada por me receber. É um prazer. Olha, a situação em Gaza se tornou tão podre, tão horrível que eu realmente não tenho mais palavras para descrevê-la. Lembro que quando recebi os primeiros relatos sobre casos de fome foi no ano passado, principalmente no norte de Gaza, que, por sinal, está completamente ilhado do nosso entendimento sobre o que acontece em Gaza.

De certa forma, a miséria que vemos está no sul de Gaza. O norte está completamente obscurecido. Mas quando recebi os primeiros relatos sobre fome, lembro de pessoas em Gaza dizendo: “Estamos nos transformando em monstros”. E isso é algo que ouço cada vez mais. A fome é tanta, tão generalizada, tão profunda, que está reduzindo as pessoas a um estágio de pré-humanidade. E é isso que acontece com quem vive essa brutalidade. Elas são forçadas, empurradas de volta a um espaço que antecede a civilização. E, novamente, pensar que isso é estratégico, que é intencional por parte de Israel, é uma mancha para todos nós.


Como podemos permitir que isso aconteça? Por que os Estados europeus e os árabes ainda não enviaram suas marinhas para romper o bloqueio? Isso precisa ser feito. É uma obrigação, não um ato de caridade. Eles precisam romper o cerco. E já é tarde demais, sabe? Essa é a situação em Gaza: devastadora.

Chris Hedges: Essa é a natureza da ação da flotilha com Greta Thunberg — claro que não iriam conseguir passar, mas foi um ato de constrangimento, de certa forma, um ato de consciência, certamente um ato de coragem. Sua voz tem sido inabalável desde o início do genocídio. E, ainda assim, muitos de nós que denunciamos o genocídio precisamos aceitar que não conseguimos salvar uma única vida — mas mesmo assim devemos continuar falando.

Francesca Albanese: Sabe, eu sempre me pergunto: para quê? Porque, de novo, me sinto inquieta. Nunca paro de falar sobre Gaza, a Cisjordânia, os palestinos. Porque acho que, como muitos, carrego uma ferida agora. É algo que eu nunca quis ver acontecer de novo. Também sou de uma geração que viu e leu sobre o genocídio em Ruanda. Tenho memórias vívidas do genocídio na Bósnia e Herzegovina. E ver o genocídio dos palestinos em câmera lenta, sendo a cronista disso, me fere irreparavelmente — mas está tudo bem.

Minha única forma de cura é garantir que as pessoas acordem e percebam que isso tem as digitais de todos nós. E quando digo isso, não é de forma retórica — é real. Porque quando se vê os lucros que empresas registradas em países ocidentais e outros estão obtendo com o genocídio dos palestinos… se perde a fé na humanidade de vez. E é verdade que não conseguimos salvar vidas, mas não sabemos, pois acredito que se Israel tivesse carta branca, já teria limpado Gaza dos palestinos. Na verdade, ao denunciar o que Israel está fazendo, estamos contribuindo para garantir que a Palestina não desapareça dos mapas.

Dentro de mim tenho a sensação de que o sacrifício dos palestinos em Gaza continuará a menos que haja um embargo de armas e que o bloqueio – quero dizer, o cerco – seja rompido, e isso não pode acontecer sem medidas coercitivas. A única maneira de proteger Israel, de garantir que Israel esteja protegido, é parando Israel. Israel é prejudicial aos palestinos, à região, para muitos de nós, para si mesmo e para seus cidadãos.

Isso é algo que os israelenses devem entender. Pessoalmente, sinto muita dor pelos próprios israelenses, porque acho que eles devem estar tão traumatizados que perderam sua humanidade. E só consigo pensar em uma grande forma de cura tanto para palestinos quanto para israelenses. Mas, novamente, não sei, certamente não salvamos vidas, mas contribuímos para mostrar a verdadeira face do apartheid de Israel.

Chris Hedges: Sobre medidas coercitivas: eu cobri a retirada das forças iraquianas do norte do Iraque quando estavam realizando uma campanha genocida contra os curdos. As forças da Otan estabeleceram uma zona de exclusão aérea. As forças iraquianas tiveram que se retirar do que estava acontecendo com os curdos. E isso nem é comparável com o que está acontecendo com os palestinos em Gaza. Mas naquele momento ficou claro que apenas medidas coercitivas salvaria os curdos. Você está, é claro, apontando corretamente o ponto em que estamos agora com os palestinos: sem medidas coercitivas, e isso tem que ser imposto de fora, a campanha de genocídio de Israel (e provavelmente o deslocamento) não serão interrompidos.

Francesca Albanese: Absolutamente. E sabe o que me choca? Quando falo com Estados-membros [da ONU], mesmo os mais “iluminados”, do Ocidente – que eu chamo de minoria global, dada nossa irrelevância territorial neste mundo – parece haver uma posição orientada pelos direitos humanos sobre a Palestina. Quando faço minhas recomendações, eles dizem: “Ah, mas você realmente espera que boicotemos Israel?”

A um Estado não cabe boicotar, mas tem a obrigação de não ajudar, não cooperar, não comercializar com Israel, não enviar armas, não comprar armas, não fornecer tecnologia militar, não adquirir tecnologia militar. Isso não é um ato de caridade: é sua obrigação. Há uma grande indiferença dos Estados-membros, mesmo os que parecem ter mais princípio, com a violação completa da lei internacional E a única coisa que vem à mente deles é: “Você acha que vamos realmente isolar Israel?” Sim, sim, o fato de que eles estão realmente relutantes mostra o quão longe estamos da solução da questão.

Chris Hedges: Há a fome: mais de meio milhão de palestinos estão agora à beira da inanição. E não há água limpa. Nem, claro, suprimentos médicos, ajuda humanitária ou qualquer coisa. 90% dos palestinos estão vivendo em tendas ou ao ar livre. Onde isso vai parar?

Israel está atraindo os palestinos como ratos para uma armadilha no sul. ninguém acha que os centros de ajuda ou a quantidade de comida (insignificante) seja algo mais do que isca para, essencialmente, amontoar palestinos em complexos vigiados no sul. E, claro, estão atirando em dezenas de palestinos por dia que, em desespero, buscam algo para comer. Eles vão empurrá-los para o Sinai? Você tem alguma ideia ou talvez Israel não saiba?

Francesca Albanese: Não tenho uma noção precisa, além de saber que Israel, por agora, estaria bem com qualquer solução que tire os palestinos da Faixa de Gaza, depois da Cisjordânia e, provavelmente, depois de Israel. São estes os três estágios da limpeza étnica planejada da Palestina histórica; nunca deve-se esquecer que Israel é um Estado que foi criado dentro da Palestina. Faixa de Gaza, Cisjordânia e Jerusalém Oriental são os pequenos pedaços de terra que restam. E mesmo lá, os palestinos não têm liberdade para desfrutar do direito à autodeterminação, de existir como um povo. IIsrael não quer os palestinos no caminho. Essa é a verdadeira vitória. 80% da população apoia o governo para manter esse nível de violência contra os palestinos, especialmente aqueles em Gaza que estão passando fome enquanto falamos, que não têm nada além de sua dignidade e as poucas coisas e amores que restam em suas vidas. A única vitória para este governo, que representa grande parte da sociedade israelense, é se livrar dos palestinos.

Não importa se é o Sinai ou o Congo, eles estão implorando a todos os países que aceitem os palestinos. E o problema é que ninguém pode fazer isso a menos que seja forçado, a menos que os palestinos peçam e implorem para serem salvos. Isso é tão cruel e é isso que está acontecendo.

Mas os palestinos ainda não fizeram isso. Eyal Weizman, da Forensic Architecture, que tem estudado outros genocídios como o alemão dos povos Nama e Herero na Namíbia, diz que Israel está seguindo o caminho de confinar as pessoas em um lugar onde não podem sobreviver por conta própria. É como um campo de concentração. É como ser totalmente dependente de uma mão que te dá, que distribui algo, mas isso não é sustentável e todo o resto está sendo destruído. Gaza não voltará a ser o que era por causa dos danos ambientais, da contaminação, por tudo o que Gaza é hoje. Mas isso não importa. Se há um lugar para onde os palestinos de Gaza se mudarão, é Israel. Esta é a oportunidade de permitir que os palestinos retornem à sua terra natal original. E entendo isso é um grande choque para os israelenses, mas mais cedo ou mais tarde eles teriam que enfrentar isso. Eles estão vivendo como muitas outras sociedades colonizadoras. Sinto muito, mas vocês, israelenses, estão vivendo em terras roubadas. E vocês não podem, como os estadunidenses que não são nativos americanos e como os australianos que não são aborígenes, vocês estão vivendo em terras roubadas. E a única redenção que vocês podem ter nesta vida é corrigir, é reparar os erros do passado. Isso é o que os israelenses conscientes deveriam fazer.

Chris Hedges: Vamos falar sobre apagamento. Israel não está apenas apagando fisicamente a Palestina, pois atacou também suas universidades, museus, centros culturais. Apagou fisicamente ou matou através de assassinatos seletivos sua classe intelectual, seus escritores, poetas, mais de 200 jornalistas, seus médicos.

Fale sobre as intensas campanhas que foram movidas contra você pelo AIPAC e pelo lobby israelense — não apenas, acredito, por você ser uma voz crítica, mas porque seus relatórios tornam difícil para Israel apagar o que fez e o que está acontecendo, algo que todos os autores de genocídio tentam fazer.

Francesca Albanese: Costumo dizer que os ataques contra mim são emblemáticos de vários aspectos desta luta. Por um lado, o que acontece comigo não é único no sentido de ser acusada de pró-Hamas, pró-terrorismo, antissemita – é a ladainha de falsidades que todos, do Papa ao secretário-geral, acadêmicos, ativistas, jornalistas, qualquer um com um mínimo de decência que ousou denunciar a realidade abominável na Palestina teve que enfrentar.

Então o que aconteceu comigo novamente não é único. O que acho único é a implacabilidade dos ataques e como eles continuam a crescer porque eu não desisto. Acredito que é porque quanto mais me ameaçam, mais eu digo: deixe-me ver como posso fazer melhor meu trabalho. Eu os chamo de cães latidores.

São realmente cães latindo: o objetivo é me distrair e não vão conseguir porque eu os conheço, eu os entendo porque costumo dizer que venho de um lugar assolado pela máfia. Você sabe quantas coisas percebi nos últimos meses também sobre mim mesma?

Por que sou assim? Por que não tenho medo deles? Por que toda vez que ligo o carro fico com medo? Claro que há momentos em que não abro a porta pensando: meu Deus, quem vai estar atrás dela? Mas é por isso que vivo minha vida de uma forma cheia de significado. Amo minha família. Amo meus filhos. Amo meu marido. Amo meus amigos. Amo meus colegas e isso é o que valorizo e cultivo todos os dias e toda noite, quando consigo ir para a cama e dormir, não tenho arrependimentos porque estou fazendo o que todos deveriam fazer.

Se eu fosse alguém em Gaza ou em outros lugares da Palestina, ou mesmo um dos muitos israelenses com quem interajo constantemente e que se sentem desesperados, devastados pelo que está sendo feito em seu nome… Se eu fosse uma dessas pessoas, adoraria ter alguém que os entendesse, que os ouvisse e que conectasse os pontos. Isso é o que incomoda soberbamente meus detratores.

Não conseguem me calar, pelo contrário, a cada tapa tentado há uma tempestade contra eles. Não importa de onde venham, não importa quem sejam, sempre se transforma em mais apoio a mim. É por isso que quando me perguntam: “Como você se sente sendo tão odiada?” Eu pergunto: por quem?Por esse bando de capangas e charlatães que defendem o genocídio. Quem se importa? Mas há um mundo inteiro em turbulência e de certa forma tenho a possibilidade de ser ouvida, o que é um enorme privilégio para mim. E porque sei quão falaz a natureza humana pode ser.

Minha âncora continua sendo a lei internacional, da melhor forma que posso interpretá-la, porque isso é universal. Isso se aplica a todos nós. Isso é para todos nós. Então não estou trazendo meus preceitos ou minha ideologia. Estou trazendo algo que pertence a todos nós. E isso é o que incomoda os detratores: que uso a solidez dos fatos e da lei para dizer quem eles são, para colocá-los diante de um espelho, e não é que não gostem de mim, mas da imagem que através de mim têm de si mesmos: genocidas ou apoiadores de um genocídio.

Chris Hedges: Quanto isso mudou a comunidade global? E estou pensando em particular, é claro, no Sul Global, que sofreu seu próprio Holocausto. Você mencionou os Herero e os Nama, mas os armênios, os quenianos sob o colonialismo britânico, os indianos, especialmente a fome de Bengala em 1943, por exemplo, três milhões de indianos morreram.

E esses Holocaustos não são reconhecidos por seus perpetradores. Aimé Césaire, em Discurso sobre o Colonialismo, diz que a razão pela qual o Holocausto realizado pelos nazistas contra os judeus ressoou foi porque as táticas empregadas – e estas são suas palavras – contra os coolies na Índia, os negros na África e os argelinos pelos franceses na Argélia foram voltadas contra outros europeus brancos. E, claro, tem sido o Sul Global, liderado pela África do Sul, que se levantou para tentar impor o Estado de direito a Israel sobre o genocídio. Isso está reconfigurando a comunidade global?

Francesca Albanese: Acho que sim. Não tão rápido quanto o fim do genocídio exigiria, mas está. Há diferentes tendências que vejo. Primeiro, como você disse, há uma convergência em torno de certas coisas básicas. Nunca ouvi tantas pessoas falando a linguagem do direito internacional.

Sério, como advogada de direitos humanos, se tivesse a oportunidade de não olhar para o genocídio por um momento, sentiria que a missão dos direitos humanos está de certa forma cumprida, porque as pessoas estão conscientes e através de uma lente comum que permite a muitos, da África à Ásia, à minoria global e outros lugares, olhar para a Palestina e reconhecer isso. Há algumas coisas em comum. As pessoas falam a linguagem dos direitos humanos. Fenomenal, não? Há também outro aspecto do despertar: nunca antes ouvi tantas pessoas conectando os pontos entre o passado e o presente, o passado colonial e o presente.

Não sei se concorda comigo, mas pelo menos sinto que há uma conscientização global sobre algo que, por muito tempo, foi uma prerrogativa dolorosa da maioria global, o Sul Global: a consciência da dor e das feridas do colonialismo. Israel, como uma fronteira colonialista ocidental está dando a oportunidade de entender o que é o colonialismo de povoamento e o que fez. A terceira coisa é que o despertar está vindo ao conectar os pontos. E olha, teremos a chance de conversar quando meu relatório sair.

Mas continuo dizendo duas coisas enquanto me preparo para revelar o que descobri através dos achados dos últimos seis meses de investigação: que o genocídio em Gaza não parou porque é lucrativo, é rentável para muitos. É um negócio. Pessoas exploraram – quero dizer, há entidades corporativas, inclusive de Estados amigos da Palestina, que há décadas fizeram negócios e lucraram com a economia da ocupação, porque Israel sempre explorou a terra, os recursos e a vida palestina.

Mas os lucros continuaram e até aumentaram quando a economia da ocupação se transformou em uma economia de genocídio. E, novamente, as pessoas precisam entender isso porque os palestinos têm simplesmente – e digo simplesmente com muita dor, sem querer ser desrespeitosa – forneceram esse campo de treinamento ilimitado para testar tecnologias, armas, técnicas de vigilância que agora estão sendo usadas contra pessoas em todos os lugares, do Sul ao Norte Global.

Veja o que está acontecendo nos EUA ou na Alemanha. Somos espionados. Veja o uso de drones, de biometria. Todas essas coisas foram testadas primeiro nos palestinos. Então acho que há essa ligação: o capitalismo desenfreado e ilimitado, que tem sido um capitalismo racial colonial também para os palestinos, prejudicial para todos nós.

Então como responder a isso? Vejo um movimento, uma revolução em gestação, que chamo de revolução da melancia. Há jovens, trabalhadores, judeus antissionistas ou judeus que não se reconhecem como antissionistas, mas ainda assim não querem ter nada a ver com os crimes de Israel e não querem que sejam cometidos em seus nomes.

Então há esse movimento e, no nível de países, vejo por exemplo o Grupo de Haia, que é uma coalizão principalmente de países do Sul Global – e não deveria ser assim. Apoiei, sustentei, elogiei esses países e peço que outros Estados da Ásia à África, e especialmente o Ocidente, se juntem ao grupo, que diz: vamos começar dando alguns passos mínimos para cumprir a lei internacional. Nada de impunidade, nenhum porto seguro e nenhuma arma para Israel. O que é realmente básico, mas é aqui que estamos. Passos de bebê.

Chris Hedges: Você pode falar sobre o que há neste relatório que está por sair: De algumas das corporações globais que estão lucrando com o genocídio e como estão lucrando?

Francesca Albanese: Não poderei dizer muito porque o relatório ainda está embargado. Mas decidi listar cerca de 50 entidades corporativas, desde fabricantes de armas até grandes empresas de tecnologia, empresas que fornecem materiais de construção ou extraem materiais de construção do Território Palestino Ocupado, indústria do turismo, bens e serviços, cadeia de suprimentos.

E esses são os dois principais setores do deslocamento e substituição dos palestinos. E há uma rede de facilitadores como seguradoras, fundos de pensão, fundos de riqueza, bancos, universidades, instituições de caridade. É um ecossistema sustentando essa ilegalidade.

O setor privado tende a escrutínio, eles são muito espertos. E, de fato, o setor privado historicamente tem sido um condutor do colonialismo de ocupação. Pense nas Companhias das Índias nos anos 1600, por exemplo,. Elas partiam dos portos holandeses para alcançar e colonizar as Índias Ocidentais ou o Sudeste Asiático. Por que diabos? E isso aconteceu.

Mas também há casos onde empresas ou entidades privadas não foram os condutores, mas os facilitadores, fornecendo ferramentas, fundos para empreendimentos coloniais que depois lhes renderam lucros. E é por isso que grandes empresas e interesses corporativos ajudaram a moldar a lei para escapar do escrutínio.

Não é novo que empresas lucrem com genocídios, mas pense no que aconteceu durante o Holocausto. Os julgamentos dos industriais do Holocausto ajudaram a entender como empresas fizeram negócios com a tragédia de milhões de judeus.

E é chocante ver que algumas das empresas consideradas responsáveis nos julgamentos dos industriais do Holocausto ainda estão envolvidas no genocídio dos palestinos. E houve a experiência da África do Sul após a Comissão de Verdade e Reparação – algumas empresas foram condenadas a fazer reparações. Houve momentos históricos que levaram a maior regulação para empresas.

Por exemplo, os princípios orientadores da ONU sobre due diligence para empresas são um resultado da experiência sul-africana. E, ainda assim, não é suficiente. Definitivamente não é suficiente, porque empresas continuam operando nas áreas cinzentas da responsabilidade estatal.

Notifiquei 48 empresas e a resposta foi: “Mas não é nossa culpa, é Israel”. “Não cabe a você nos dizer o que fazer, são os Estados”. Não, sinto muito. Hoje a ocupação é ilegal. Israel foi notificado, está sendo investigado direta ou indiretamente em pelo menos três processos por genocídio, crimes contra humanidade e crimes de guerra. Vocês não podem continuar business as usual. E se continuarem, terão que enfrentar a justiça. Então, provavelmente, a tempestade que ajudarei a levantar contra eles será garantir que a sociedade civil e advogados em todos os países onde essas empresas estão registradas atuem, e que consumidores saibam que podem votar com seus pés, podem boicotar. Por exemplo, há empresas de turismo que promovem propriedades em assentamentos. Ou agentes imobiliários que vendem “bairros anglófonos agradáveis no coração de Judeia e Samaria”. Isso é normalização da ocupação por um grupo, e essas empresas serão punidas. Talvez não na justiça, mas certamente perderão muitos clientes quando souberem o que elas estão fazendo.

Chris Hedges: Para encerrar, vamos falar sobre organismos internacionais – o TPI, a ONU. Eles certamente se manifestaram contra o genocídio, tentaram responsabilizar Israel, mas não têm mecanismos de execução. Como você vê essas organizações e seu papel no genocídio?

Francesca Albanese: Olha, não concordo totalmente com o argumento de que não há mecanismos de execução. Há mecanismos – os Estados-membros, que têm obrigação de executar as decisões da CIJ. Há até o Conselho de Segurança que, no ano passado, aprovou uma resolução ordenando cessar-fogo em Gaza, que não foi respeitada. Então não há execução de nada concebido para limitar a impunidade de Israel.

E de certa forma, sim, concordo com você. Israel é visto como parte do colonialismo ocidental, da confrontação do Ocidente com o resto do mundo, o que é vergonhoso. Não deveríamos estar ainda nesta ótica racializada.

Somos parte da mesma família. Isso é humanidade. Não importa sua cor, seu deus ou falta dele, mas o que nos faz humanos, e somos os mais cruéis entre todos os animais, com tantas barreiras que erguemos e precisamos derrubar. Esta é a chance – não sei se necessitará outro genocídio, mas este está desencadeando algo mais. Viu a guerra contra o Irã? Era totalmente previsível, porque Israel semeia guerras na região há décadas. Foi o Iraque, depois outros países, Líbia e Síria também devastados. É verdade, não se pode culpar Israel por tudo. Mas Israel certamente se beneficiou da aniquilação de adversários na região. E bombardear o Irã foi alimentar um demônio. Era o objetivo de longo prazo de vários governos israelenses, e finalmente aconteceu.

O que Israel tem a ganhar com isso? Com a morte de inocentes, iranianos ou israelenses? Por isso digo: isso precisa parar. O mecanismo de execução existe – são os Estados. Mas eles empurram com a barriga, esperando um deus ex machina como a UE ou a ONU intervir. Tudo começa com os principais Estados membros e é por isso que mais uma vez elogio muito o Grupo de Haia, porque eles estão agindo não como uma organização regional ou trans-regional, mas como uma coalizão de Estados com princípios e pensamentos semelhantes.

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A crise do Ocidente e o desafio dos Brics

    Declínio da ordem eurocêntrica é político, econômico e ético. E mesmo heterogêneo, o novo bloco tem algo decisivo em comum: rejeitar o domínio colonial. Por isso, irrita Trump. Por isso, é preciso cultivá-lo e caminhar com ele

Em evento recente, no âmbito do G20 no Rio de Janeiro, o professor Ha-Joon Chang, autor do famoso livro Chutando a escada1, comentou com surpresa que estava o tempo todo ouvindo os expositores e outras pessoas falando em crise; na crise civilizatória, econômica, climática, alimentar, de saúde, e mais. “Se vocês fossem ao Oriente e perguntassem às pessoas sobre a crise, elas diriam, ‘de que crise você está falando?’”

Em todo caso, é o chamado Ocidente Coletivo – nome informal dado aos países que foram aliados dos EUA durante a Guerra Fria, entre 1947 e 1991, principalmente da Europa – que está submerso numa crise profunda, que vai além das cíclicas crises a que o capitalismo nos têm acostumado.


Na verdade, a ordem mundial atual, surgida depois da Segunda Guerra Mundial, está-se desmoronando, e o deterioro provoca o caos que sentimos na região, que por sua vez impacta o conjunto do planeta de diversas formas, dada a importância hegemônica do Ocidente, tanto econômica quanto militar.

As instâncias institucionais multilaterais como o FMI, o Banco Mundial, a OMC e outras estão deslegitimadas, junto com princípios tais como o respeito pelas fronteiras dos países, a igualdade e autonomia dos estados, o princípio de não ingerência, o direito de autodeterminação dos povos. Todas, premissas basilares do sistema normativo e do direito internacional, princípios que sustentariam o funcionamento considerado pacífico do mundo, ou dito de outro modo, que impediriam uma terceira guerra mundial. Isto considerado de um modo geral, apesar das “guerras eternas” promovidas pela potência hegemônica em diversos países, quase sempre em cada um isoladamente, na velha lógica do “dividir para conquistar”. De fato, nas últimas décadas, os EUA foram se transformando na “polícia do mundo”, especialmente a partir da queda da União Soviética e do fim da Guerra Fria, consolidando esse papel a partir de 2001 e sua “guerra ao terrorismo”.

Por sua vez, a globalização corporativa veio desde os anos 1980 impondo a hegemonia econômica norte-americana e a lógica do livre comercio e do estado mínimo, promovendo também o pensamento único e o “fim da história” a partir do modelo neoliberal.

Entretanto, todas essas receitas deram resultados muito diversos aos prometidos pela globalização produtiva e acabaram provocando fortes alterações na geopolítica global, multiplicando as crises financeiras a partir de meados dos anos 90, especialmente a partir dos avanços sem regras do sistema financeiro internacional. Concomitantemente, o desmonte do sistema produtivo ocidental pela deslocalização das empresas em busca do barateamento do emprego, e da entrada do hegemón em guerras destrutivas em busca de territórios e recursos, ampliou e aprofundou as crises, especialmente em 2008, quando a explosão do sistema financeiro norte-americano fez a crise se espalhar pelas bolsas do mundo inteiro. No meio desse turbilhão surge o BRIC em 2009, depois de ter contribuído com as reservas dos países-membros para superar a crise, e já formando o G20 como parte dos países convidados pelo G7, diante da ingovernabilidade do sistema econômico internacional.

Porém, o BRIC (posteriormente BRICS, com a incorporação da África do Sul) irá além desse primeiro momento de intervenção para contribuir com a saída da crise, colocando desde o começo o desafio de superar o sistema hegemônico unipolar, mostrando sua vocação de multilaterização do cenário mundial e de promoção da integração multipolar.

A começar porque eles, desde o início, reconheceram a importância de empenhar esforços conjuntos para o avanço da diplomacia multilateral e um “sistema econômico justo e equilibrado”2 reforçando a necessidade de resolução pacífica de conflitos e reafirmando a importância do diálogo em matéria de segurança e paz mundiais, como também a cooperação Sul-Sul.3

Contexto no Norte Global


Por se tratar de um resumo apertado, para prologar este dossiê organizado pela REBRIP, vamos tentar comentar aqui a nossa perspectiva sobre o BRICS e sua atual importância no contexto da ordem internacional neoliberal, que desde 2009 só vem mantendo uma crise profunda e com evidências notórias de declínio.

Em 2025, encontramos os EUA em crise e com uma dívida ingovernável de mais de 120% do seu PIB, provocando incerteza político-económica no próprio país e no mundo. A chegada de Trump à Casa Branca só tem tornado a situação ainda mais conflituosa, acrescentando novos elementos à guerra tarifária que os EUA vêm promovendo com a China há anos. Algumas de suas propostas remetem à quebra de pilares do convívio internacional assentados no ultimo século – de respeito à integridade dos países e suas autonomias –, como no caso da anexação da Groenlândia, do Canal do Panamá e do vizinho Canadá, exemplos de como vem-se provocando uma grande turbulência global.

Já na Europa, a situação também mostra enorme instabilidade, e a perspectiva de continuidade da guerra na Ucrânia, apesar das tortas tentativas de Trump de levar à frente um cessar fogo, só multiplicam a situação de crise e fragilidade da região. Uma Europa que tomou para si uma guerra por representação dos interesses norte-americanos do governo Biden, de avançar na fronteira leste europeia com a Rússia, apesar dos alertas e até dos acordos assinados4 desde 2014, dos conflitos no Maidan, e da perspectiva de entrada da Ucrânia na OTAN. Ou seja, uma guerra impossível de ser vencida pela Ucrânia, e que deixou milhares de mortos e feridos. Uma tragédia com consequências gravíssimas para a economia e bem-estar europeus, que segue porque não se reconhece que é uma guerra perdida, e pela arrogância da dirigência europeia em continuar um conflito completamente rejeitado por sua população, com um custo de 800 bilhões de euros para a criação de um parque armamentício próprio, que possa substituir o fim da colaboração norte-americana para a OTAN enfrentar a continuidade dessa guerra.

Tudo isso somado à crise instalada na indústria europeia, à fragilização do sistema energético e às inúmeras consequências sociais e climáticas dessas escolhas. Sem falar no legado da destruição na Ucrânia: maltrato aos migrantes nas fronteiras da “Europa fortaleza” com o afrouxamento da defesa dos direitos humanos e até o abandono dos ideais humanitários explicitado no apoio a Israel, autor do genocídio ainda em curso em Gaza.

Em síntese, um Norte global que tem demonstrado a incapacidade do multilateralismo ocidental em lidar com as crises sistémicas do planeta: de saúde, económica, social e ambiental, levando-nos à atual descrença de muitas populações na política e num futuro melhor.

Importância do BRICS

Por outro lado, nos últimos 15 anos, vimos crescer simultaneamente outro processo: o do avanço do BRICS, agora um bloco se expandindo de forma significativa, com a entrada de mais 6 países5, formando o chamado BRICS+, com 11 países e uma longa fila de solicitações de adesão. Isso, no contexto de surgimento e ascensão do chamado “Sul Global”, sendo este um conceito em debate que inclui características como o princípio de cooperação com benefícios mútuos, que dá fundamento a uma perspectiva socioeconómico diversa da hegemônica, um espaço de resistência aos projetos coloniais. Um construto alternativo, que questiona as dinâmicas de poder existentes, buscando promover uma ordem internacional mais justa. Essas características do que agora chamamos Sul Global já se encontraram de formas similares na história recente com outros nomes, como países não alinhados, ou Terceiro Mundo, trazendo sempre a lógica de quem sofreu situações coloniais.

O BRICS constitui-se nesse contexto, mas agora enquanto “países emergentes”, com a perspectiva de se transformarem nas principais economias do mundo até 2050, com grandes populações e áreas territoriais extensas, somada a uma presença de peso em seus continentes. Isto evidentemente traz novos desafios, chances e caminhos para seu funcionamento e desempenho.

O crescimento acelerado da China nesses poucos anos tornou o país uma potência econômica e tecnológica, que tem inclusive arrastado diversos países do sudeste asiático numa trilha de multiplicação das opções produtivas locais e regionais e de avanço nas tecnologias digitais. A Índia, com enormes diferenças políticas com seu grande vizinho do norte, tem caminhado numa perspectiva de convívio pacifico, que o diálogo político no BRICS vem ajudando até o momento a manter. Por sua parte, a parceria estratégica da Rússia com seu sócio mais importante, a China, tem-se traduzido em acordos de interação estratégica e associações de interesse mútuo, que ajudaram a suportar as milhares de sanções econômicas recebidas dos EUA.

Já África do Sul e Brasil, apesar de serem sócios menores, têm tido um papel qualitativo fundamental para criar as bases democráticas de processos importantes, como a criação do Novo Banco de Desenvolvimento (NDB) e do Acordo de Reservas Contingentes (CRA), além de aproximar amplas regiões, África e América Latina, onde são, respectivamente, polos continentais.

Entretanto, não só as transformações das condições econômicas desses países foram importantes para o surgimento em 2009 desse novo bloco internacional. Mas também as condições políticas criadas pelas repetidas crises econômico-financeiras, com foco inicial no ocidente, e pelo declínio político e ético do Ocidente Coletivo – EUA e seus aliados na OTAN – com as inúmeras guerras acontecidas no Sul Global, e que perduram até hoje, (escalando em truculência com o genocídio em Gaza). Ambas as causas, econômicas como também as razões ético-políticas, se entrelaçam condicionando-se mutuamente.

Condições geopolíticas da crise sistêmica

Esse é o momento complexo que vivenciamos atualmente, acirrado com a eleição de Trump e o avanço da ultradireita neoliberal.

De fato, o novo presidente norte-americano tem-se mostrado bastante disruptivo. Entretanto, sua verborreia não consegue ocultar que as propostas de aumento seletivo das tarifas de importação seguem uma linha de guerra comercial já desenhada por governos anteriores, e também que há continuidade no processo de fragilização das instituições multilaterais (Castilho, 2025). Mas possivelmente, a maneira de fazer os anúncios traga o estilo shock com o propósito de acelerar a “reciclagem global” como conceituado por Varoufakis6.

A essência deste mecanismo de reciclagem global é simples: desde a década de 1970, os deficits dos Estados Unidos proporcionaram a Alemanha, Japão e posteriormente, China, a demanda por produtos de suas fábricas. Em troca, a União Europeia, Japão e, posteriormente, China enviaram seus lucros acumulados para Wall Street e seu subalterno, a City de Londres, para que fossem reciclados no setor rentista estadounidense: dívida privada e pública, financeirização parasitária com investimentos em ações e bens imobiliários.

Esse mecanismo, que tem gerado deficits comerciais crescentes e uma gigantesca dívida nos EUA, ao mesmo tempo tem permitido o acumulo de renda na Europa do norte e no Leste asiático. E agora parece que o limite chegou, e Trump não tem feito mais que escancarar a perspectiva das elites americanas a seus principais aliados no mundo, abandonando seus sócios, que parecem agora atordoados e oscilando entre a condenação e a permanência ao lado de seus algozes.

Acreditamos que o importante agora é perceber que isso está possibilitando uma janela de oportunidade para nos repensar enquanto parte do Sul Global, procurar recuperar a economia produtiva do ponto de vista das cadeias de produção que precisam ser reorganizadas e realizar a pendente tarefa da industrialização, com inovação e bem-estar, envolvendo a região, como fez a China com seus vizinhos.

O Brasil no BRICS, na reciprocidade

Quando se tem pela frente um cenário global com tanta incerteza e turbulências, ter clareza sobre o rumo a seguir, em relação ao modelo produtivo e de país que se constrói, permite contar com um alicerce firme a partir do qual é possível reagir frente aos desafios e oportunidades. Diante da quebra das cadeias produtivas explicitada após a pandemia, o atual rearranjo global da produção se impõe, e permite vislumbrar oportunidades para a retomada a médio e longo prazo da reindustrialização brasileira, acompanhando o avanço tecnológico e a urgente necessidade da transição para uma economia de baixo carbono. No caso do Brasil, o atual contexto interno parece ainda insuficiente para nos permitir aproveitar essa oportunidade externa que se apresenta, a menos que o país tome as decisões políticas que se requerem neste momento.

O BRICS faz parte dessa oportunidade que permite vislumbrar uma perspectiva de mudança nos rumos da atual e desigual divisão internacional do trabalho, que nos empurra necessariamente ao modelo primário exportador, ambientalmente insustentável, com escassa criação de empregos e concentração da renda, e sua consequente desigual distribuição social da riqueza. Temos agora a possibilidade de negociar no BRICS um lugar de trocas de inovação e tecnologia que nos permita caminhar para uma matriz produtiva com valor agregado, apoiando as pequenas e medias empresas com maiores condições de criar emprego, e ampliando o enorme potencial da bioeconomia e das fontes de energia renováveis.

E essa oportunidade que vem do BRICS aparece tanto por razões geopolíticas, de construir um mundo multipolar, anti-hegemonista e que permita avançar numa distribuição do poder global a partir de múltiplos atores, como também a partir das possibilidades de facilitação das transferências de tecnologia e de investimentos capazes de alavancar a sustentabilidade do crescimento e a capacidade de superação das enormes desigualdades brasileiras e da região. Essa chance depende do diálogo construtivo e do peso da história de povos que vêm buscando superar as experiências coloniais e o “choque de civilizações” promovido pelo ocidente.

A democracia liberal e o multilateralismo ocidental têm fracassado na sua tarefa de promover a paz e a prosperidade. Por isso é preciso caminhar para a coexistência civilizacional da humanidade, o que inclui a aceitação das diferenças e da autodeterminação dos povos.

O BRICS, agora aumentando o número de países e seu alcance global, é um grupo com visões e perspectivas políticas, culturais e civilizacionais muito diversas, mas empenhadas em trabalhar juntas na diversidade, em prol da melhoria da prosperidade global.

Apontamentos para a construção de futuros possíveis do BRICS+

Apesar de certas visões críticas e resistentes às mudanças no cenário internacional, que querem ver um antiocidentalismo no BRICS+, o bloco vem-se firmando como um farol que busca iluminar um mundo multipolar, de respeito às diferenças históricas, políticas, econômicas e culturais que nos desafiam no mundo globalizado.

Por isso, temos aqui questões fundamentais a serem refletidas.

– Em primeiro lugar, o BRICS é uma construção do Sul Global, e portanto, podemos dizer que, em essência, está formado por países que foram colonizados, “não ocidentais” na sua maioria, mas nem por isso antiocidentais. Entretanto, é necessário superar a narrativa anti-Brics, pelos muitos clichés e preconceitos que a rodeiam. Pelo contrário, o BRICS vem sendo construído com uma estratégia não confrontacional, como expressado diversas vezes pelo embaixador Celso Amorim e outros líderes, aceitando as diferentes visões e buscando um mundo de paz e mais justo, e que fortaleça o desenvolvimento do Sul Global, superando o subdesenvolvimento, “herança maldita” do colonialismo.

Um multilateralismo que também permita o funcionamento das instituições multilaterais necessárias – existentes e novas – que possam ser reformadas e atualizadas a partir de regras de convivência internacional, que condenem a fome, a pobreza, o racismo, o genocídio, e todas as formas de neo-colonialidade, desigualdades e discriminações. Destacamos inclusive que a luta pela autodeterminação Palestina em Gaza e Cisjordânia, fazendo frente ao brutal genocídio praticado por Israel com o explícito apoio do Ocidente, tem que se tornar bandeira simbólica da própria luta do Sul Global.

Esse é, talvez, o maior desafio, e por isso para nós, sociedade civil brasileira, é da ordem do essencial buscar o convívio harmonioso entre civilizações milenares, prevalecendo como prática permanente o combate e superação das desigualdades e mazelas que resistem em todas as nossas sociedades. A proximidade cultural com EUA e Europa, tem de fato nos prejudicado, pois ela ajudou a perpetuar o colonialismo político e cultural que foi a patina hegemónica da submissão econômica de América Latina e outras regiões aos países do Norte Global.

Assim, e apesar de fortemente moldada pelo ocidente, nossa rica e milenar cultura indo-americana conseguiu (e ainda consegue) enriquecer-se com as contribuições das culturas africanas, e posteriormente de outros povos migrantes, e também fez e pode continuar a fazê-lo com as culturas asiáticas. Só o maior conhecimento recíproco e as trocas culturais poderão frutificar na necessária cooperação internacional de benefícios mútuos, para construir um mundo civilizado que, pela primeira vez, experimenta com a comunicação online a maior aproximação global até agora conhecida.

– Em segundo lugar, acreditamos que o BRICS precisaria ter como objetivo harmonizar as relações entre os países do Sul Global, utilizando a cooperação multidimensional e a “conectividade económica” com recursos naturais, financeiros, tecnológicos e com liderança estatal, fatores que lhe proporcionam a autonomia necessária para o desenvolvimento com equidade e justiça ambiental, superando a crise da qual falávamos e que surpreendia ao professor Ha-Joon Chang.

Existe no Sul uma desconfiança no sistema económico hegemonizado pelo Norte Global, especialmente pelo desequilíbrio dos EUA e as respostas tarifárias exageradas impostas por Trump, que até extemporaneamente decretou “a morte do BRICS”. Alguns analistas enxergam nos EUA um certo declínio agressivo que se evidencia no uso de mecanismos de punição coercitivas – como as inúmeras sanções impostas à Rússia, mas também a outros estados –, utilizados como armas econômicas para impedir o crescimento de países rivais, avivando esse clima de desconfiança, e criando fortes turbulências.

Daí que a perspectiva de resposta do BRICS tenha-se fortalecido no questionamento ao sistema monetário hegemônico, buscando alternativas e soluções tais como o uso de moedas nacionais mútuas nas transações comerciais, acordos de cooperação em inovação e tecnologia (para enfrentamento das mudanças climáticas, de combate à fome e de iniciativas em saúde global e local), trocas em processos industriais e de transição energética e nas áreas de comunicação, dentre outras.

– Em terceiro lugar, tem sido levantada a questão da organização do BRICS, e de aperfeiçoamento de sua institucionalidade. Até agora, o bloco tem funcionado sem secretariado nem estrutura permanente, como uma rede descentralizada.

Entretanto, e apesar de certa necessidade de institucionalização e ao menos de centralização da informação, consideramos que

num espaço multilateral, resulta mais atraente esse formato flexível que não exija uma mesma medida para todos. Nem regras rígidas que busquem avançar ideias como a moeda única, que acabaria sendo centrada na China pela maior força e tamanho e à qual a Índia provavelmente se oporia, ou utilizar um sistema de pagamentos no qual alguns países se sentiriam presos.7

Justamente daí surge parte da efetividade do BRICS, desse formato mais flexível, que tem permitido os 15 anos de andamento e do forte interesse de adesão de um grande número de países. O que aliás, já significa um sucesso do BRICS por seu valor simbólico de aglutinação dos anseios de multilateralismo existentes no Sul Global.

Finalmente, para concluir com esta introdução ao dossiê, queremos enfatizar a necessidade de o governo brasileiro comprometer-se com o aprofundamento e ampliação da participação social no Conselho Civil do BRICS, e de fato em todo âmbito negociador da PEB – Política Externa Brasileira. Nesse sentido, a REBRIP demanda a criação do CONPEB – Conselho Nacional de Política Externa Brasileira, de caráter consultivo e inclusivo da diversidade da sociedade brasileira em seu conjunto, para dar maior solidez às ações domésticas e internacionais, e ser o canalizador dos processos participativos, a partir da autonomia da sociedade civil, e com respeito à política externa como política pública nacional.

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