Os “fuzis artesanais” que atormentam as periferias
A A | Os "fuzis artesanais" que atormentam as periferiasA partir de peças importadas de Miami ou moldadas em impressoras 3D, surge uma indústria de armas clandestina no país. Nova logística oferece mercado diversificado para empoderar milícias e reconfigura cadeia ilícita de armamentos – que torna quase impossível rastreá-los Da importação à indústria clandestina: a mutação do mercado de fuzisEm 20 de agosto de 2025, a Polícia Federal estourou uma oficina de armas em Rio das Pedras, Zona Oeste do Rio de Janeiro, onde eram montados fuzis a partir de peças importadas de Miami. No local, os agentes policiais encontraram maquinário, armas em fase de montagem e impressoras 3D, usadas para fabricar componentes. Havia indícios de participação de milicianos que trazem uma expertise diferenciada sobre a gramática de armamentos e os seus modos de emprego (i)legal e (i)legítimo. Uma operação policial também iniciada no dia 20 e estendida ao dia 21 de agosto de 2025 expôs a escala dessa prática: em Santa Bárbara d'Oeste e Americana, no interior de São Paulo, policiais federais e militares localizaram, respectivamente: 1) uma oficina clandestina de fuzis disfarçada de empresa de usinagem aeronáutica, equipada com moldes e maquinário de precisão; e 2) um galpão com peças e cerca de 40 fuzis em fase de acabamento. Poucas semanas depois, em 19 de setembro de 2025, a Bahia registrou uma apreensão recorde: em menos de 24 horas, foram confiscados 28 fuzis em operações realizadas em Camaçari, Porto Seguro e Salvador — sendo que, só em Abrantes (Camaçari), a polícia localizou 22 fuzis prontos, munições e drogas. No acumulado de janeiro a setembro, o estado já somava quase 100 fuzis apreendidos, revelando a difusão desse mercado e a interiorização da produção e circulação de armamento pesado. Esses episódios recentes de 2025 são exemplares de um movimento mais amplo e dinâmico, em curso há anos, que tende a se aprofundar com a difusão tecnológica e a reconfiguração das cadeias ilícitas de armamento. Mais do que casos isolados, são indícios de uma transformação em curso. O chamado "crime organizado" já não depende do contrabando internacional de armas: a manufatura doméstica de fuzis facilita a atividade criminal e dificulta o trabalho das forças de segurança. Esse deslocamento significativo no mercado (i)legal de armas, amalgamado por negócios (i)lícitos e (in)formais, marca a transição de um modelo monopolista de importação/exportação para um regime de produção híbrida. Essa nova forma combina aquisição de componentes externos e internos com montagem local e modular, reunindo pedaços heterogêneos, de origem distinta e fluxos diversos. Trata-se de uma espécie de assemblagem ilícita. O processo reduz os custos logísticos e operacionais, um dos grandes gargalos do crime e um dos principais desafios das polícias e da segurança pública. Ele garante a regularidade de oferta e diversifica as fontes de abastecimento. Também encarece e complexifica o trabalho policial — do rastreio de peças à perícia balística —, trazendo níveis mais elevados de exigência nas distintas modalidades de policiamento público e estatal. Ao manufaturar o fuzil de forma doméstica e descentralizada, a economia criminal itinerante e em rede converte uma arma antes relativamente escassa e de alto custo em um bem de produção seriado, vantajosamente canibalizado e sem registro. Sua presença performática no espaço urbano excede a funcionalidade tático-operacional. Ainda que pouco eficiente em enfrentamentos de curta distância, típicos dos eventos cidade — da favela ao asfalto —, o fuzil cumpre um papel simbólico, moral e político: instrumento de construção identitária, dispositivo de prestígio e poder, meio de intimidação e de domínio territorial negociado. O que se consolida é uma prática discursiva em que a arma não é apenas recurso bélico com um alcance estendido de alto impacto letal. Ela é também capital simbólico e mercadoria estratégica, com elevada visibilidade ostentatória e rendimento performático para os regimes do medo e suas práticas de exceção. Ela sustenta a força das governanças criminais e, ao mesmo tempo, expõe a vulnerabilidade da resposta policial, marcada pela dificuldade de pronta reação e pela insuficiência de repressão qualificada diante da hipersaturação de fuzis entre grupos e nas polícias. Cada arma clandestina introduz uma nova camada de cálculo na cadeia político-econômica do crime, viabilizando uma lógica de proteção assentada na disseminação da ameaça difusa e da violência como moeda de troca. Tem-se um rendimento da proliferação do fuzil que serve como um ícone sinalizador da capacidade de emprego da coação potencial e concreta, que distribui coercitividades (i)legais e (i)legítimas, dobra vontades, dissuade pela violência e impõe sujeições. Por que o fuzil? Economia, prestígio e poderA produção local altera as condições de controle, monitoramento e responsabilização, multiplicando pontos de vulnerabilidade na investigação, no patrulhamento, na emergência, nas operações especiais e, não menos importante, nas atividades periciais e de inteligência. Entre as opções estratégicas do mercado ilícito, observa-se a escolha deliberada pela montagem clandestina de fuzis — e não de pistolas ou armas curtas. Há boas razões econômicas, logísticas e simbólicas para isso. Economicamente, a escala de produção e o reaproveitamento de componentes tornam o fuzil mais rentável em mercados que demandam poder de fogo como recurso político-econômico regular. Logisticamente, o fluxo de peças modulares compensa o investimento inicial em maquinário. Simbolicamente, o fuzil oferece prestígio e intimidação, convertendo-se em mercadoria com alto valor de troca social e política nas disputas territoriais. A escolha pelo fuzil exige especialização: armeiros, usinagem de precisão, linhas de acabamento. Esse capital técnico gera externalidades favoráveis ao crime — maior margem de revenda, fidelização de clientes, capacidade de manter estoques. Assim, mesmo com desvantagens urbanas (volume, peso, munição cara), o retorno econômico e simbólico compensa. O fuzil funciona como totem de poder e terror, cuja visibilidade pública supera sua utilidade bélica imediata. Importante destacar a reconfiguração das redes de propina e conivência policial que a economia do fuzil revela: a presença de fábricas e linhas de montagem altera os incentivos e os circuitos de pagamento relacionados à apreensão (ou à não apreensão) de fuzis e, não menos importante, à devolução negociada ao dono ilegal do fuzil apreendido, conhecida no Rio de Janeiro como "kit sucesso". Tem-se um rearranjo que redefine quem paga, quanto se paga e por quais armas se paga, deslocando os esquemas de propina de simples acertos pontuais para mecanismos contínuos de financiamento e regulação clandestina. Essa reconfiguração articula-se ao conhecimento especializado necessário na aquisição, montagem, revisão e distribuição dos armamentos — saber que, em grande medida, provém de atores do próprio Estado (policiais, militares regulares) e de atores com acesso técnico e autorizações, como os colecionadores e caçadores (CACs). Assim se forma uma cadeia produtiva híbrida, onde o capital técnico-político do Estado orienta, subsidia e regula as práticas ilegais e clandestinas. Aqui, o "esquema" de propina com agentes públicos mescla os controles formais, tornando-se parte do aparato de policiamento integrante dos negócios da proteção e de seu circuito de armas e drogas. Tem-se, neste caso, o avanço do policiamento dos bens, com seus arranjos entre grupos criminais e agentes estatais, na governança de territórios, e os esforços de contenção pelo policiamento do bem, composto pelos segmentos das forças públicas que não se tornaram patrões, sócios ou funcionários do crime organizado. Evidencia-se que o ator relevante contra ou a favor da organização criminosa (ORCRIM) é o Estado em sua abstração política e a burocracia estatal na concreção de suas práticas, emaranhadas e dispersas nos labirintos institucionais. Do mercado ao artefato político: efeitos condensados do fuzilObserva-se como a fábrica clandestina de fuzis atua não apenas como engrenagem de mercado, mas como operador político que redistribui custos, riscos e ganhos. Para tornar visível essa articulação entre dimensões materiais e simbólicas, o quadro a seguir sintetiza os efeitos mais significativos desse arranjo. Quadro 1: Síntese dos efeitos significativos ![]() O elenco de efeitos reunidos aponta que a fábrica clandestina de fuzis não se reduz a um arranjo de mercado, mas se projeta como um artefato político que tensiona e reacomoda as relações entre crime e Estado. Esses efeitos não operam de forma linear-causal, mas como uma gramática material e simbólica que atravessa distintos domínios: a logística da oferta, a economia do preço, a especialização do trabalho, a rastreabilidade policial e o simbolismo social. É nessa chave que a clandestinidade industrial se deixa ver como prática inserida nos modos criminais de governo e nas tecnologias de sujeição adotadas. Pode-se observar como cada efeito se combina e se reforça nos diferentes eixos que dão alguma centralidade ao fuzil na economia política do crime. A) Logística e oferta: da escassez à previsibilidade A emergência de unidades de montagem e pequenas fábricas desloca a disponibilidade de armas do regime esporádico do contrabando para um padrão de oferta mais previsível. Onde antes o armamento dependia de rotas longas e de risco, instala-se uma arquitetura de estoques e reposição: peças chegam por canais diversos, são acumuladas e montadas conforme a demanda. Isso altera o repertório de planejamento dos domínios armados — operações, bloqueios e ocupações passam a considerar a existência de reservas internas de armamento, reduzindo a dependência de "oportunidades" externas e tornando as decisões táticas e políticas menos sujeitas a rupturas de abastecimento. B) Economia e preço: arrendamentos e rotatividade do poder de fogo A produção local e as modalidades transitórias de apropriação (empréstimos, consignações, arrendamentos) reconfiguram a relação custo-benefício do armamento. Não é preciso comprar para dispor do poder de fogo: fórmulas de arrendamento e empréstimo permitem que um assalto, uma ação pública de grande visibilidade — como o assassinato de um delator do PCC no aeroporto de Guarulhos ou mesmo uma "encomenda" letal, como o assassinato do ex-chefe da Polícia Civil de São Paulo — sejam executados com armamento de alto calibre sem o desembolso inicial. Isso torna o fuzil acessível a operadores episódicos e facilita a rotatividade do poder de fogo entre grupos. Na prática, a redução do preço unitário e a circulação temporária diluem o custo e transferem riscos para o provedor, ao mesmo tempo em que criam vínculos de dependência: pactos locais e obrigações informais entre fornecedor e usuário consolidam-se como dispositivos de governança. O efeito político é duplo: expande a capacidade operacional sem exigir capital alto e, simultaneamente, dificulta a responsabilização individual e institucional, porque o armamento deixa de ser um bem de propriedade estável e passa a ser produto de uma bricolagem que atira, fere e mata. Esse cenário se adensa quando se considera a flexibilização do porte e do acesso às armas promovida pelo governo Bolsonaro (2019-2022). Pistolas, carabinas e fuzis passaram a circular mais livremente no varejo da vida social, permitindo ao crime "matar com nota fiscal". Barateou-se o custo do armamento e saturou-se a já limitada capacidade estatal de fiscalização — política que, na lógica do "liberou geral", não tinha interesse em se aprimorar. Estimulou-se, assim, um mercado legal regulado de forma insatisfatória, cujos estoques transbordam para o ilegal e produzem uma circulação híbrida de pequeno e grande porte. Essa política ancorava-se na ilusão pseudoliberal de que o indivíduo armado poderia se autorregular e se autofiscalizar, sobretudo numa sociedade brasileira desigual e hierárquica, que aciona suas razões de cor, classe, gênero etc. para impor soluções. O controle foi deslocado para a figura isolada do comprador — na lógica do individualismo egoísta e desconectado dos pactos políticos-normativos, onde "se fez errado, que pague". A contrapartida seguiu sendo a fabricação de leis duras, concebidas para serem impraticáveis, e que reforçam o desmanche e a descaracterização de armas. O efeito imediato foi a criação — e o reforço — de uma capacidade coativa potencial dissolvida no cotidiano da vida comum. Sua existência e a exibição de sua disponibilidade para o uso criam um efeito impositivo e dissuasório. Esse efeito desiguala os termos de toda e qualquer negociação, frente à possibilidade constante da ameaça latente e difusa de uma arma como escolta das interações conflituosas. Arsenais privados tornaram-se recurso de estoque para impor soluções violentas e autoritárias de conflitos nos espaços de convivência, sejam eles públicos ou privados, criminais ou não. Trata-se de um legado que persiste no atual governo Lula. Apesar do esforço de retomar algum rigor na legislação e na fiscalização, os efeitos da flexibilização anterior permanecem, com marcas que seguem organizando o mercado e a circulação de armas. C) Trabalho especializado: armeiros, técnicos e intermediários A montagem em escala exige competências técnicas e arranjos organizacionais: usinagem, acabamento, manutenção e logística não são mais tarefas improvisadas, mas funções especializadas. Surgem polos de saber prático — armeiros, técnicos e intermediários — e cadeias de fornecimento que articulam fornecedores legais e ilegais. Essa profissionalização produz bens mais confiáveis e padronizados, fideliza clientelas e amplia a capacidade de oferta. Desloca-se o problema do enfrentamento apenas para o campo policial, porque atinge também dimensões laborais, econômicas e de regulação de mercados. D) Rastreabilidade e perícia: o labirinto do controle estatal A fragmentação das rotas e a modularidade das peças complicam a rastreabilidade. Componentes sem numeração, corpos remontados e uso pontual de tecnologias de fabricação dificultam a identificação da origem e exigem perícias multidisciplinares — metalúrgica, digital, balística. Isso eleva custos e tempos de investigação e impõe à polícia maior necessidade de cooperação (administrativa e técnica), bem como de controle aduaneiro e inteligência financeira. A consequência é uma assimetria: enquanto a cadeia criminosa se flexibiliza com a contribuição do Estado, a resposta estatal demanda investimentos longos e custosos que dependem de prioridades políticas do governo. Estas prioridades podem não acontecer diante da ausência ou presença da "vontade política" personalista, instável e suscetível à busca por resultados eleitorais. E) Simbolismo e fetiche: o fuzil como ativo relacional O fuzil opera simultaneamente como instrumento e como signo: mesmo em cenários urbanos e em geografias acidentadas — ocupações com traçado irregular, becos e encostas que reduzem manobrabilidade e campo de visão — sua presença excede a racionalidade tático-operacional. O peso, o porte e a logística de munição tornam o fuzil desajustado a muitos ambientes cotidianos. Contudo, a visibilidade pública do armamento confere autoridade às governanças criminais. Além disso, a circulação por arrendamentos e empréstimos transforma o fuzil em ativo relacional: é tanto ferramenta de coerção quanto meio de composição de lealdades e obrigações locais. Metas, propinas e a engrenagem político-criminalOutro efeito perverso são as metas isoladas de apreensão de fuzis, que transformam o que deveria ser um meio para reduzir a circulação de armas num fim em si mesmo. Esse simplismo retroalimenta a lógica das propinas e dos esquemas necessários para sustentar o produtivismo policial. Como não é possível manter uma curva linear e crescente de apreensões — sobretudo das armas mais caras —, tais metas acabam exigindo a negociação direta com o crime para garantir números vistosos. A estatística de impacto, convertida em propaganda imediata, funciona como capital eleitoral, enquanto, nos bastidores, rearranjam-se as propinas em torno daquilo que será ou não apreendido. Esse processo ancora-se num saber técnico especializado sobre aquisição, montagem, revisão e circulação de armamentos — muito dele oriundo de agentes do próprio Estado (policiais, militares regulares) — e dá forma a uma cadeia produtiva que combina crime e aparato estatal, transformando a gestão de fuzis em moeda política e publicitária. Quadro 2 – Engrenagem política das metas ![]() Diante dessa engrenagem — metas que se autoalimentam, estatísticas convertidas em capital eleitoral e uma cadeia produtiva híbrida — seguem-se implicações práticas imediatas para políticas de controle de armamentos, fiscalização interna e transparência das operações. A leitura dos eixos analíticos permite compreender que os efeitos das fábricas clandestinas produzem impactos concretos no funcionamento cotidiano do crime e na capacidade de resposta do Estado. É nesse ponto que se pode sistematizar as implicações práticas da montagem local de fuzis, organizadas como catálogo técnico que traduz a engrenagem industrial em consequências operacionais diretas para o mercado ilícito e para a ação policial. Quadro 3 – Implicações operacionais específicas ![]() A convergência entre esses eixos gera um circuito autorreprodutor: a oferta regular e o preço mais baixo expandem o mercado; a especialização assegura qualidade e fidelização; a perda de rastreabilidade aumenta a impunidade; o valor simbólico do fuzil retroalimenta sua demanda. O resultado é uma economia política armada em que o fuzil opera simultaneamente como mercadoria, signo de poder e instrumento de governo territorial. O desafio da "industrialização criminal"As fábricas clandestinas de fuzis expressam a industrialização do crime organizado como parte constitutiva da economia política em rede que envolve negócios (i)legais e governanças criminais sob a regulação do Estado. Não se trata de desvio ou exceção, mas de prática ordinária que reorganiza fluxos, regula preços, redistribui riscos e reconfigura relações de poder. Este artigo buscou evidenciar cinco pontos centrais:
A engrenagem das metas de apreensão, das estatísticas publicitárias e dos esquemas de propina mostra como o policiamento dos bens se entrelaça à gestão criminal, enquanto o policiamento do bem é tensionado pelos labirintos institucionais. O enfrentamento desse fenômeno exige compreender que a industrialização do fuzil é também uma tecnologia de governo. No plano regulatório, implica controle de peças, kits e marketplaces virtuais. No plano técnico, supõe ampliar a perícia e a rastreabilidade forense. No plano político, demanda cooperação internacional, arranjos federativos e monitoramento financeiro. Mas o ponto decisivo é simbólico: disputar o fetiche do fuzil como signo de prestígio e poder, que tem sido construído como uma pedagogia de governos policiais e militares dentro da estrutura do Estado. Sem essa disputa política de sentidos que vem de dentro, a engrenagem político-criminal seguirá operando o fuzil como artefato central da economia política do crime — mesmo diante de sua menor rentabilidade logística e tático-operacional nos domínios territoriais armados. | A A |
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